Muito obrigada!

 

Concordância, seja nominal ou verbal, é sempre uma pedra no sapato do brasileiro. O adjetivo “obrigado” flexionado em feminino plural feriu seus ouvidos? Ou você pensou: eu, hein, isso só pode ser português de Portugal! Mas a verdade é que o estranhamento, ou melhor, aquilo que fere os ouvidos não é apenas o que está errado, mas também aquilo que não estamos acostumados a ouvir. A expressão de cortesia “obrigado” varia conforme o sexo do sujeito da oração, pois é um adjetivo. Concorda com a(s) pessoa(s) que agradece(m). Um homem diz “muito obrigado”; a mulher, “muito obrigada”. O agradecimento no plural é usado de forma muito rara, mas é correto responder à pergunta “Como vão seus familiares?” com “Vamos bem, obrigados!”.  O mesmo ocorre com o agradecimento de um grupo de mulheres: “muito obrigadas!”.

Depois de um intenso debate na universidade, fui convencida de que responder a uma ação com um obrigada (o) não correspondia ao mais alto nível da gratidão, pois essa palavra continha em sua essência um peso que trazia em si uma ruptura da gratuidade do dom. Nesse período, estava imersa na leitura de dois livros especificamente: a Antrologia do Dom de Marcel Mauss, como também o Percurso do Reconhecimento de Paul RIcoeur, em que estes autores fazem uma outra abordagem da lógica da reciprocidade.

Ok. Muito a contragosto, até que a minha consciência provasse o contrário, passei a adotar o grata para agradecimentos em situações em que eu desejava expressar a minha sincera gratidão, desvinculada da ideia do “estou sendo obrigada a fazer isso”.

Como não sou lógica em 100% do tempo, ouço a voz do coração,  algo lá dentro começou a me falar: nossa, que palavra mais seca, parece até que você está “agradecendo” e dizendo: Grata! Pode deixar que eu continuo sozinha, agradeço por tudo o que você fez até aqui. Tchau! Como dizem: curta e grossa.

Não, não era essa leitura que eu queria que tivessem de mim! Por favor, um minuto, não foi bem isso o que eu quis dizer. E até que me deparei com uma explicação de São Tomás de Aquino, em sua obra Suma Teológica. Ele nos ensina, em seu Tratado da Gratidão, que a gratidão se compõe em diversos graus. O primeiro consiste em reconhecer o benefício recebido, obter uma graça, aceitar um favor. O segundo consiste em louvar e em dar graças àquele que nos deu algo gratuito, em troca de nada. O terceiro grau é a retribuição, de acordo com suas possibilidades, segundo as circunstâncias mais oportunas de tempo e lugar.

Recentemente, ouvi um lindo agradecimento em um Congresso de Educação do renomado professor da universidade de Lisboa, Antônio Nóvoa, em que ele cita exatamente esse tratado da gratidão.

Antônio Nóvoa nos contou acerca de uma aula magna que precisava preparar para ministrar na UnB – Universidade de Brasília, no Distrito Federal. Ele disse que, na ocasião, só veio à sua cabeça como ele poderia expressar sua gratidão aos pesquisadores brasileiros por tudo o que haviam lhe dado, e havia sido muito.

Seus sentimentos eram claros, ainda assim não sabia por onde começar, mas exatamente naquele momento o professor teve um insight: lembrou-se do tratado de gratidão de São Tomás de Aquino. E esse tratado, como disse anteriormente, possui três níveis: um nível mais superficial, um nível intermediário e um nível mais profundo.

O nível mais superficial é o nível do reconhecimento intelectual, o nível cerebral, o nível cognitivo do reconhecimento.

O segundo nível é o nível do agradecimento, do de dar graças a alguém por aquilo que esse alguém fez por nós.

E o terceiro nível mais profundo do agradecimento é o nível do vínculo, é o nível de nos sentirmos vinculados e comprometidos com essas pessoas. E de repente, ele descobriu uma coisa na qual ele nunca tinha pensado: que em inglês ou em alemão se agradece no nível mais superficial da gratidão. Quando se diz “thank you” ou quando se diz “zu danken”, estamos agradecendo no plano intelectual.

Nóvoa, em seu discurso, prossegue dizendo que na maior parte das outras línguas europeias quando se agradece, o agradecimento está no nível intermediário da gratidão.

Quando se diz “merci”, em francês, quer dizer dar uma mercê, dar uma graça. Eu dou-lhe uma mercê, dou-lhe graça por aquilo que me trouxe, por aquilo que me deu, ou “gracias”, em espanhol, ou “grazie”, em italiano. Dou-lhe uma graça por aquilo que me deu. E é nesse sentido que eu lhe agradeço, é nesse sentido que estou grato.

No entanto, em português, esta expressão é tão encantadora e singular ao mesmo tempo, pois é o único idioma a situar-se, claramente, no terceiro grau, o nível mais profundo da gratidão: “o do vínculo (ob-ligatus), o do dever de retribuir”. Ao dizer “obrigado(a)”, como disse o professor Antônio Nóvoa aos pesquisadores brasileiros, quero eu também expressar que fíco obrigada perante vocês, fíco vinculada a vocês, fico comprometida a um diálogo com vocês.

Agradeço o seu comentário, a sua atenção, o seu compromisso em fazer parte desta inteligência coletiva que se constrói neste ciberespaço. Fico obrigada, vinculada a continuar este diálogo, e, na medida do possível, contribuir com os meus insights para as suas reflexões, os seus projetos, os seus trabalhos, os seus diálogos.

O agradecimento, portanto, está, intimamente, ligado a quem pensa, pondera, reconhece o benfeitor. E, ao aceitar uma dívida impagável, a pessoa agradecida sente-se embaraçada, porque sabe que, por mais que faça, tudo será insuficiente. Assim, é preciso humildade para aceitar um favor imerecido, pois fica o dever de retribuir, acompanhado da consciência de que será impossível cumprir totalmente. Porém, quem não quiser se comprometer com a retribuição, que use os inócuos “Valeu!”, “Falou!”, “Beleza!”. Eu deixo aqui a todos os meus leitores, ou melhor, escrileitores, o meu muito obrigada!

O nosso insight do dia:

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O que você achou do insight de hoje? Você já sabia disso? Me conta, quero muito te ouvir! Muito obrigada!